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A guerra comercial entre China e Estados Unidos


A eclosão de uma “guerra comercial” entre EUA e China transforma a economia mundial em um grande campo de batalha. A interdependência econômica provocada pela transnacionalização dos mercados faz com que ninguém esteja imune aos efeitos da troca de golpes entre esses dois gigantes. O que podemos entender por “guerra comercial”? E como fica o Brasil que, por um lado, tem sua nova orientação geopolítica voltada para os EUA e, por outro, tem um forte fluxo econômico voltado para a China? Essas são algumas questões debatidas nesse 10º Fórum Internacional de Ideias, realizado no dia 7 de junho de 2019.

Professor Antonio Marcelo Jackson: Olá a todos! Eu sou o professor Antonio Marcelo Jackson da Universidade Federal de Ouro Preto e nós estamos comendo mais um Fórum Internacional de Ideias, cujo tema central hoje é a Guerra Comercial entre China e Estados Unidos. O palestrante principal é o professor José Luiz Albuquerque, também da Universidade Federal de Ouro Preto. José Luiz tem graduação em Direito pela UFMG, mestrado pela Universidade de Utrecht em Análise Econômica do Direito e Doutorado pela PUC de Minas Gerais, em Relações Internacionais.

Também participa deste Fórum o professor José Medeiros da Silva, da Universidade de Estudos Internacionais de Zhejiang, na cidade de Hangzhou, na China. Caro José Luiz, a palavra é sua.

Professor José Luiz Albuquerque: Que prazer estar aqui neste contexto tão interessante, de perspectivas diferentes! Sobre um tema que, com certeza, é transdisciplinar. Não adianta a gente olhar para uma questão tão importante como essa da Guerra Comercial entre Estados Unidos e China só pela perspectiva do direito, ou da economia ou da geopolítica. Temos que entender os aspectos culturais que estão por trás e de questões históricas que são muito importantes para percebermos como é que a China se posiciona hoje, diante desse tipo de comportamento, digamos agressivo, por parte da política externa dos Estados Unidos e como é que isso afeta o mundo - porque são dois gigantes que, quando brigam, o mundo inteiro sofre entre eles.

É interessante pensar como é que chegamos a esta situação, uma vez que a própria adesão da China ao sistema econômico internacional, adesão à Organização Mundial do Comércio (OMC), e a sua inserção no sistema capitalista foi, em grande medida, trazida pela própria mão dos Estados Unidos, que se beneficiaram disso por muito tempo e tiveram uma série de vantagens comerciais. Para muitas empresas dos Estados Unidos isso foi muito importante.

Só que o crescimento da China acabou fazendo com que esse país se tornasse não só um parceiro, mas também, um desafio. Tem uma expressão em inglês que é Friends and Enemies: é o colega competidor, que é um pouco a situação que os Estados Unidos e a China se encontram hoje.

Especialmente a partir de 2018, há um aumento da retórica e da adoção de práticas, especialmente no que se referem à administração de tarifas aduaneiras, em excesso ao que foi admitido pelo direito da Organização Mundial do Comércio, sem respeitar uma série de princípios do Direito Internacional e uma retórica muito inflamada, que acabou fazendo com que os jornalistas do mundo inteiro começassem a falar de uma Guerra Comercial - é claro que, essa palavra “guerra” é uma palavra muito forte, mas, sem dúvida, a dimensão do que está em jogo faz com que essas palavras poderosas tenham um lugar na nossa conversa.

Então, desejo fazer a provocação sobre esse tema. O que é que seria precisamente a ideia de uma Guerra Comercial? De que maneira o que a gente está experimentando agora se enquadra nessa terminologia? Por que teríamos chegado a uma situação em que se fala de uma Guerra Comercial? Será que essa Guerra Comercial poderia se transformar num conflito militar, mesmo? Esse risco é evidente? E, enfim, quem ganharia essa guerra? Podemos prever isso? É um palpite. E, dentro do possível, se podemos especular como fica o Brasil nesse cenário, uma vez que esses gigantes se assemelham a movimentação de placas tectônicas provocando terremotos e tsunamis em todo o mundo.

É mais ou menos essa a perspectiva que eu queria provocar. Mas, antes de aprofundarmos, eu queria dar a palavra ao Professor Medeiros, para falar como é que ele tem percebido a matemática da guerra comercial na mídia, no cotidiano, na perspectiva da China?

Professor José Medeiros: Em primeiro lugar, é uma satisfação participar deste Fórum Internacional de Ideias, que vai se consolidando como um espaço para reflexão. Sobre esse tema, certamente é o assunto mais importante na atualidade, no sentido da geopolítica, no sentido da política internacional. Como o professor José Luiz mencionou muito bem, são dois grandes gigantes se enfrentando.

Sobre a perspectiva desse embate dentro da China, tenho notado, há algumas semanas, que houve mudança na narrativa da mídia, que começou a enfatizar a luta antiamericana. O Diário do Povo, por exemplo, lançou uma espécie de editorial falando sobre o “espírito da Longa Marcha”. Na concepção chinesa, isso significa se preparar para duras adversidades e até mesmo se sacrificar para enfrentar uma situação que precisa ser superada.

Então, a primeira coisa que a China está fazendo é preparar o imaginário do seu povo para possíveis adversidades econômicas, interrupções de fluxos de comércio ou enfrentamentos maiores. Isso indica claramente que esse enfrentamento está em um novo estágio.

Rafael Lima, um amigo brasileiro radicado na China, levantou uma hipótese muito pertinente. Segundo ele, a China acreditou por muito tempo que os Estados Unidos estavam realmente querendo negociar um acordo comercial. Por isso ela negociou e cedeu ao extremo. Contudo, a China já percebeu que o objetivo dos norte-americanos não é negociar, mas sim enfrentá-la. Eu concordo com essa análise de Rafael Lima de que a partir de agora os Estados Unidos vão ter que lidar com essa China que é preparada para grandes enfrentamentos.

Professor José Luiz Albuquerque: Antonio Marcelo Jackson, essa semana, o governo chinês lançou um documento oficial, o China's Position, ou seja, a primeira vez que a China faz um documento longo, detalhado, dizendo qual é o entendimento da China sobre essa questão. E nele usa essa expressão “Guerra Comercial”- Trade War. Gostaria que você comentasse. A China não quer uma Guerra Comercial, mas não tem medo de uma guerra e vai lutar, se for necessário. E a posição da China é essa e nunca mudou, quer dizer, se o Trump estava blefando – se falava pelos cotovelos ou não -, agora parece que acordou o dragão e a China está se posicionando, como quem está preparado para, como diz um amigo meu – “haja o que hajar, vai tá no pódio ou ponto”. O que diz?

Professor Antonio Marcelo Jackson: Pensando primeiro no comentário do José Medeiros, a respeito da Longa Marcha, eu me lembro do “Destino Manifesto” que é algo tão ideologicamente comum na sociedade norte-americana. É interessantíssimo você ver a China construir, ainda que com outro viés, esse mesmo argumento ideológico. Ou seja, a primeira batalha – pressupondo que a guerra já está declarada - se dá no próprio front interno, quer dizer, convencer a sociedade de que tempos sombrios virão. É interessante também pensar que quando você fala em guerra comercial não se refere apenas à sua capacidade de produção, mas também à sua capacidade de consumo. Nesse sentido, me pergunto se é interessante para os Estados Unidos querer realmente levar esse “conflito” até o fim – ou, então, que o Trump aprenda um pouco mais de política! Em outras palavras, a China teria uma capacidade não só produtiva maior que a norte-americana, mas uma capacidade de consumo também.

Eu me lembro de ter lido, ou se foi alguma conversa com José Medeiros, há uns dois anos atrás, sobre a previsão de que a China ultrapassasse os Estados Unidos em 2030 ou 2040 em todos os níveis. Isso dito pelos norte-americanos – o que é um dado bem interessante.

Agora, devolvendo a palavra a você, José Luiz, faço um pedido: dentro das coisas que já estudou, e eu sei que você é especialista na questão dessa Guerra Comercial, gostaria de levar o tema para a seara de Clausewitz (“a guerra é a continuação da política, só que por outros meios”). Mas, antes de chegar a essa guerra de fato - e vamos torcer para que ela não chegue - como fica a Guerra Comercial? E antes, numa “Guerra Híbrida” - que é um conceito das relações internacionais – gostaria que abordasse.

Professor José Luiz Albuquerque: Temos uma ideia tradicional de guerra, que o senso comum nos leva a pensar em uma luta armada entre Estados. Essa é a ideia básica de guerra, o típico cenário da Segunda Guerra Mundial, da Primeira Guerra Mundial - Estado contra Estado, violência militar, grupos definidos. E aí, para quem é do Direito, vêm as minhas questões: houve ou não a declaração formal de guerra? Quantas pessoas morreram? Quanto tempo durou? O que são questões que vão problematizar a ideia de guerra e, nesse sentido tradicional clássico e um pouco jurídico da guerra, essa coisa que está acontecendo não se enquadraria nesse conceito.

Já a “Guerra Comercial” seria uma outra coisa. O problema é que, a partir especialmente da Guerra Fria passou-se a perceber que há uma série de agressões entre Estados que não ocorrem no formato da luta armada. Tem uma série de formas de enfrentamentos que não tem mais aquela ideia do grupo armado que vai lá e mata e destrói tudo. No entanto, há um espírito de troca de agressão. Então, alguns teóricos começaram a trabalhar com outras noções, entendendo que ainda que não se tenha a luta armada, você pode ter um tipo de ação, de qualquer forma, que prejudique os governos adversos, os adversários.

Veja que essa expressão é muito abrangente: “Qualquer forma de prejudicar os governos”, e isso envolve atos diplomáticos, econômicos, políticos, propaganda, movimento dissidente, infiltração de agentes, pressão diplomática, fake news, lawfare, sanções econômicas, guerra cibernética e uma série de outras ações que, muitas vezes, são pontuais e não, necessariamente, você tem o pacote inteiro. Dependendo do momento, dependendo do contexto, adota uma coisa ou outra. Frente a isso, começou a se falar de guerras não convencionais. É daí que vem a expressão Guerra Híbrida: ela está muito associada a você utilizar, dependendo do objetivo, certas táticas que podem envolver ações militares ou não militares, ações secretas ou ações abertas, ações econômicas ou ações jurídicas, diplomáticas, cibernéticas. E, dentro dessa ideia, não há dúvida de que tem havido uma série de ataques, especialmente dos Estados Unidos contra a China.

Por muito tempo a China vinha respondendo dentro daquela perspectiva da Lei de Talião - olho por olho, dente por dente. Então, tudo que os Estados Unidos faziam, a China devolvia exatamente no mesmo tamanho. A ideia de retaliação está muito associada à Lei de Talião, no mesmo nível, mas, a partir dessa semana, com esse posicionamento oficial, a China muda um pouco o tom, deixando muito claro o seguinte: a China não buscava esse enfrentamento, não provocou esse enfrentamento, como o professor Medeiros falou. Sentou para negociar várias vezes, e aceitou, em grande medida, ceder. Ela entende que seu crescimento acaba incomodando outros países, inclusive os Estados Unidos. E, por isso mesmo, aceita negociar uma solução razoável para todos. Mas, do jeito que a coisa estava sendo conduzida por Trump, chegou um ponto em que a China produziu um documento com expressões fortes.

A China é muito minimalista. Ela não fala mais do que ela precisa falar, nunca blefa; tudo é metricamente calculado. Todas as ações diplomáticas são feitas tendo como escopo o necessário. Tem usado expressões como trade bullying com relação a vários países do mundo, dizendo que os Estados Unidos fazem um bullying econômico com várias nações. Vamos lembrar que, enquanto os Estados Unidos estão pressionando a China, ele está pressionando a Rússia, o Irã, a Venezuela, a Coreia do Norte, a Síria… todo mundo. E todos que não estão submetidos têm de lidar com um pacote de uma série de medidas que não se resumem ao campo militar, mas também, econômico.

Um exemplo são os vários tipos de pequenas sabotagens, como a questão de acesso à utilização dos sistemas internacionais de pagamento. Deixam claro o seguinte: primeiro, a economia da China e dos Estados Unidos são integradas demais, interligadas. A interdependência econômica faz com que seja uma péssima ideia eles entrarem neste tipo de conflito - e o mundo inteiro sofre junto. E que a única coisa que faz sentido para eles é cooperação.

Creio que estão deixando claro aqui o entendimento de que há espaço para um acordo, com soluções mutuamente satisfatórias, contanto que seja um acordo que não exija da China um tipo de submissão, no que eles chamam, o “campo dos princípios”. Depois o Medeiros pode comentar como é que a China trata os traumas dos acordos assimétricos, os acordos desiguais de cem anos atrás - algo que até hoje não desceu na garganta dos chineses -, da maneira como a Inglaterra, as potências europeias trataram a China. E ela coloca isso: “olha, a gente negocia, a gente quer chegar a um acordo, mas a gente não vai ceder nada no que se refere aos princípios”. E o princípio significa que tem que ter um tratamento igualitário, tem que ser bom para os dois e não pode ter uma coisa que só a China que cede, que só a China que aceita, como era o que os Estados Unidos estavam propondo e, talvez, como professor Medeiros falou, os Estados Unidos, talvez, não quisessem um acordo, e sim provocar.

Professor José Medeiros: Isso que passou a se chamar de guerra comercial, parece que é apenas o início de um embate mais prolongado. O professor Antonio lembrou apropriadamente o Clausewitz, que via a guerra como uma extensão da política. Esse embate comercial, na minha visão, é também uma extensão da política. A comunicação interna preparando o imaginário dos chineses para esse enfrentamento é um sinal muito significativo. Por exemplo, já existe uma recomendação do governo para que estudantes e pesquisadores evitem os EUA. Só para lembrar, nós temos mais de 370 mil estudantes chineses nos Estados Unidos atualmente.

Professor José Luiz Albuquerque: Vão boicotar os produtos norte-americanos também?

Professor José Medeiros: Não há dúvidas, no caso de um avanço desse embate. Porque aí o conceito de inimigo na China é muito claro!

Ainda sobre a questão da guerra, gostaria de lembrar do clássico “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu, para quem o grande general é aquele capaz de vencer sem a necessidade da batalha física.

E voltando a esse tópico da guerra comercial entre a China e os EUA, esse é um embate estratégico que não se limita ao Trump. Precisamos considerar também os argumentos do Ocidente, sob a liderança dos EUA. ‘Poderíamos confiar na China?’; ‘Será que ela não está planejando, com o desenvolvimento de altas tecnologias, uma forma de dominação?’

A desconfiança é algo normal na relação entre os Estados. Até aí, nada de novo. Por outro lado, o fato do Trump ter subido ao poder mudou completamente o jogo. Isso porque o segmento financeiro do mercado que dominava a política dos Estados Unidos olhava e jogava com a China de outra forma, na esperança aproveitar também o boom econômico chinês para que o seu capital se reproduzisse ainda mais. Por isso havia mais negociação.

Penso que poderemos está diante de duas visões de mundo muito distintas em rota de colisão. O ocidente, representado aqui pelos Estados Unidos, age para que os outros funcionem conforme a sua doutrina, sua ideologia, sua concepção de mundo. O oriente chinês é diferente. Ele não quer mudar os “bárbaros”, mas apenas que eles sejam contidos fora de suas muralhas, para não alterar a “Grande Harmonia”. Ou seja, a perspectiva chinesa de organização do sistema internacional é completamente diferente da perspectiva norte-americana ou, digamos assim, anglo-norte-americana.

Professor Antonio Marcelo Jackson: O que eu vou colocar aqui não estava previsto: temos uma potência como a China, com 1 bilhão e 300 milhões de habitantes e com um mercado consumidor brutal. Ao lado, a Índia, com seu 1 bilhão de habitantes, tentando seguir um caminho e que tenderia mais para os chineses, escapando da influência norte-americana. Frente a isso, dentro dessa Guerra comercial EUA e China, a Índia não será beneficiada?

Professor José Luiz Albuquerque: Acho que nesse contexto em que os EUA têm pressionado os países para que eles tomem um lado, inclusive adotando sanções ilegais, porque esse tipo de medida não tem respaldo no direito internacional, isso não deve andamento jurídico. É um ato político e de força, mas ainda que se possa tentar construir uma justificativa jurídica, a princípio temos que falar que é ilegal.

Não estou vendo entusiasmo nem de parceiros dos EUA em comprar essa briga que eles estão querendo que os outros tomem. Ficam mais isolados quando tentam esse caminho e criam problemas para seus aliados. Eu acho que se os países conseguirem não serem vinculados a um lado ou a outro, eles podem aproveitar oportunidades comerciais que surgem exatamente pelo vácuo deixado pelas empresas dos EUA na China e pelas empresas chinesas nos EUA. Quem conseguir não se vincular pode aproveitar oportunidades. É o que eu torço para o Brasil, apesar de não ter muita esperança.

Por exemplo, o Brasil produz soja e os EUA também, se a China para de comprar dos EUA vai ter uma demanda que deverá ser abastecida, e quem vai abastecer? Bom, se o Brasil não estiver comprando o lado dos EUA gratuitamente, poderia ser o Brasil. Esse é o tipo de circunstância que a China se encaixa também. Naquilo que for possível substituir um ou outro, essa guerra comercial abre oportunidades para os outros. Para os que se vincularem a um lado ou outro, as oportunidades serão mais restritas.

Marcelo, eu quero te devolver uma pergunta, que eu acho que você fará uma análise interessante. É a seguinte: O Trump tem um estilo empresário, fala muito, enfim; você acha que ele abusou da retórica de uma guerra comercial e falou mais do que devia? No fundo ele está tentando vender uma imagem para o eleitorado americano? Ele está de olho no público dos EUA mais do que em uma questão internacional e econômica? Você acha que ele pode estar mais preocupado com as próximas eleições do que com o comércio internacional e isso tudo é um jogo de cena?

Professor Antonio Marcelo Jackson: Tradicionalmente, para a Ciência Política, quando você fala em regimes republicanos e que tenham eleições a cada quatro anos em média, se coloca que no primeiro ano o governo busca construir sua imagem. Passa dois anos tentando fazer alguma coisa e, no último ano, está pensando nas eleições seguintes. Então de quatro anos ele administra apenas em dois.

Não nos esqueçamos que, quando você vê a eleição do Trump e alguns outros fenômenos - e o Brasil está dentro disso - de eleições que se deram a partir de fake News, onde a plataforma política foi operacionalizada em outros níveis, que não aqueles tradicionais que a gente estava calculando, então, de fato, o que se percebe é como Trump mantém uma campanha permanente – coisa que se repete com Bolsonaro. Mas, há um problema quando você faz uma campanha permanente: o governante fala somente para seu eleitorado e cada vez mais administra menos, perdendo o contato com a realidade.

Lembro-me de há poucos meses ter sido ventilado algo sobre a possibilidade de um impeachment do Trump. É algo muito estranho, pois parece que ele continua agindo como se fizesse propaganda da sua empresa. Como se fosse um diretor de empresa - e ele se esquece que está dirigindo agora um país. Quando a gente olha para a China ou a própria Índia, ou outros países, há uma situação oposta, onde existe um pensamento a longo prazo. É uma política previsível onde o governante não está fazendo uma campanha para se reeleger, não está pensando na eleição de amanhã. Essa é uma diferença tremenda. É um problema ver um sujeito que governa como se estivesse permanentemente em campanha, porque as relações internacionais e todo o resto ficam comprometidos. Isso é um problema.

Professor José Medeiros: Sobre o Trump, levanto a hipótese de que seu principal enfrentamento ainda é interno. Ou seja, mesmo eleito, ele ainda não conseguir vencer muitas forças internas. Claro que tirou um grupo do centro do poder, mas isso não significa que o seu grupo passou a exercer o poder de forma predominante. Os enfrentamentos internos continuam em diversos setores da sociedade norte-americana, como por exemplo no setor da comunicação. O Trump pode estar usando essa retórica contra a China pensando também na sua reeleição, assim como foi na campanha eleitoral para o seu primeiro mandato.

No caso de uma reeleição de Trump, o seu poder interno atingirá um outro patamar e aí sim, o verdadeiro Trump vai aparecer. Por exemplo, é possível mudar a sua relação com a Rússia, isso para enfraquecer a China, etc.

Sobre a Índia, esse é um ator que também deve ser acompanhado de perto nesse jogo. Acho que, estrategicamente falando, a Índia faz com a Rússia um contraponto a esse poderio chinês. São muitas as contradições internas dentro dessas relações.

Sobre o Brasil, como o professor José Luiz observou tão bem, concordo que não devemos tomar partido de um lado ou de outro, pois essa “guerra” é deles. Temos que agir como mediadores, procurando sempre a manutenção de um ambiente pacífico, que favoreça o nosso desenvolvimento.

Professor José Luiz Albuquerque: Queria aproveitar essa última parte do seu comentário para dizer o seguinte: se o Brasil entrar nessa de um alinhamento incondicional com os EUA, querendo agradá-los, começar a adotar sanções contra a China, como às vezes se pede pelos EUA em âmbito diplomático, o Brasil é muito vulnerável a sofrer uma retaliação da China que vai doer fundo na alma dos exportadores. A China desmonta nosso saldo comercial com poucas decisões, porque os produtos exportados, como soja e ferro, são concentrados e a China tem um poder de barganha muito grande. Eles podem tomar uma decisão que fecha mercados para o Brasil em uma velocidade que o pessoal não está preparado para encontrar alternativas a curto prazo.

Acho que ainda que o Trump por mais que tenha acelerado ou atrapalhado alguma coisa, existe um processo muito mais enraizado historicamente. A ascensão da China e o declínio dos EUA, fatalmente em algum momento se encontrariam. Havia uma especulação nos anos 80 de que uma guerra entre EUA e Japão seria inevitável, mas acabou não acontecendo. Ou seja, essas tensões geram especulações, mas esses modelos de integração asiáticos, Chineses, como a iniciativa, “Um Cinturão e uma Rota”, que é uma proposta de integração diferente da liberação comercial, que vem a partir da legalização comercial tipo OMC, FMI, é um outro paradigma de integração, mais focado em um estilo que me parece trazer benefícios mais equilibrados. Acho que realmente há um antagonismo de modelos que tem nesse episódio a ponta do iceberg apenas.

Professor Antonio Marcelo Jackson: Chego a duas conclusões. Em uma guerra comercial entre EUA e China, o Brasil morre de uma bala perdida. A segunda conclusão é que mais uma vez o José Medeiros tem toda razão e precisaríamos de outros fóruns para aprofundar melhor essa questão. Como já estamos a quase uma hora de conversa, vamos então para as considerações finais.

Professor José Medeiros: Esse fórum foi mais uma espécie de brainstorming, onde apenas levantamos algumas questões gerais sobre a natureza dessa guerra comercial dentro de um contexto geopolítico mais amplo.

O que fica claro em relação ao Brasil é que nós não devemos (e sobre isso existe aqui entre nós um consenso) tomar partido por nenhuma das duas narrativas. Ou seja, precisamos criar nossa própria narrativa para nos posicionar melhor dentro dessa disputa.

Professor Antonio Marcelo Jackson: Agora eu passo a palavra a você José Luiz, para o encerramento do nosso fórum de hoje. Fique à vontade.

Professor José Luiz Albuquerque: Gostei muito desse debate. Ficamos com um gostinho de quero mais. Queria poder alongar, quem sabe encontramos outros pretextos para fazer isso. Queria deixar mais algumas reflexões no seguinte sentido. Penso que nessa perspectiva histórica de longa duração, a razão pela qual os EUA estão se movimentando nesse sentido é porque já estão perdendo essa guerra econômica. Ele declara essa guerra porque economicamente já está perdendo. A China está engolindo os EUA economicamente. Ela se tornou uma economia maior e mais dinâmica e promissora: a perspectiva de futuro da China é muito mais consistente, coerente e palpável do que qualquer proposta particularmente dos EUA.

Penso que pela razão pela qual eles se sentem compelidos a acelerar e aumentar esse conflito se deve ao fato de que já estão em grande medida perdendo espaço no mercado internacional. Acho que vão perder mais, acho que a ultrapassagem da China é algo inexorável nesse contexto e não é essa guerra comercial que vai mudar isso. A China tem condições de absorver melhor o ônus dessa guerra do que o próprio EUA que está provocando. Ela aguenta com mais saúde, mais reserva e mais fôlego que os EUA. A iniciativa “Um Cinturão e uma Rota”, oferece que os países, mesmo da América Latina que nem estão na rota, iniciativas tão interessantes que eu não vejo os EUA conseguindo aglutinar em torno de uma proposta estadunidense com grande apoio internacional. Tanto que eles estão forçando outros países a fazer algo que eles não querem fazer e não oferecem nada em troca. Houve ameaças e mais do que isso nos EUA do governo Trump e aí eu acho que é uma coisa que faz diferença de um presidente para o outro, ele promoveu profundos desengajamentos com a governança internacional.

O governo dos EUA implodiu aquelas iniciativas de fazer os megablocos de integração comercial com a Europa de um lado e a Ásia, de outro. Enfim, ele tira apoio da ONU, ele esvazia os órgãos internacionais, e a China está ocupando todos os espaços abertos porque as organizações pedem. O FMI pediu dinheiro para a China e ela deu, a ONU pede, ela dá. Então, eu acho que no fundo antes de começar essa guerra a China já ganhou. Ela está sendo atacada porque está ganhando. Penso que essa guerra não vai se esquentar nem tanto no ponto comercial que eu acho que não será tão profunda como se imagina porque quem está provocando a guerra tem mais a perder do que quem está sendo provocado. Quando não se tem mais nada a perder pode-se pensar em uma solução militar, mas apesar de os EUA serem de longe uma força militar maior que a China e o resto do mundo, já existe tecnologia para tornar esse tipo de poder baseado nos poderes americanos como algo obsoleto, como os porta aviões.

Acho que EUA não entraria em uma guerra total. Isso faz com que a coisa fique no campo econômico e diplomático mesmo. Penso que talvez seja o início de um fim dessa era que nasceu ao final da segunda guerra mundial, baseada em organizações internacionais, criadas, planejadas, incentivadas e implementadas pelo próprio EUA que agora o rejeita. O que vai vir não será dominado do mesmo jeito que a gente teve na segunda metade do século XX. Talvez não esteja claro o que vai ser, mas temos que ficar atentos para tentar descobrir, porque nosso futuro depende disso. Devolvo a palavra para você, professor Marcelo.

Professor Antonio Marcelo Jackson: Queria agradecer ao José Luiz Albuquerque, professor da Escola de Direito, Museologia e Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto; a José Medeiros, que é co-fundador do Fórum Internacional de Ideias, esse projeto que já caminha para seu segundo ano. Isso me orgulha e orgulha a todos que participam de forma direta ou indireta. Espero que essas reflexões de hoje sejam muito proveitosas a todos. Um grande abraço e até o nosso próximo Fórum.


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